sábado, 25 de janeiro de 2014

Lema do Reitor-Mor - Parte II



Olá pessoal!

Tal como prometido, aqui vai a segunda parte do Lema do Reitor-Mor!

1. Elementos da espiritualidade de Dom Bosco

Chegar a uma identificação precisa da espiritualidade de Dom Bosco não é tarefa fácil; não por nada, talvez seja este o aspeto menos aprofundado da sua figura. Dom Bosco é um homem todo voltado para o trabalho apostólico; não nos descreve as suas evoluções interiores, nem nos deixa reflexões particulares sobre a sua experiência espiritual. Não escreve diários espirituais nem oferece interpretações das suas vivências interiores; prefere transmitir um espírito descrevendo as vicissitudes da sua vida, ou através das biografias dos seus jovens. Não basta certamente dizer que a sua é uma espiritualidade apostólica de quem desenvolve uma pastoral ativa, uma pastoral de mediação entre uma espiritualidade douta e uma espiritualidade popular; é necessário identificar o núcleo da sua experiência espiritual.

Agora surge um problema sério: como investigar a espiritualidade de D. Bosco, dada a extrema escassez de fontes da sua vida interior? Deixemos que os teólogos de espiritualidade aprofundem esta temática metodológica e tentemos identificar alguns elementos fundamentais e caraterísticos da sua experiência espiritual.

A espiritualidade é um modo caraterístico de sentir a santidade cristã e de para ela tender; é um modo particular de ordenar a própria vida para adquirir a perfeição cristã e participar num especial carisma. Noutros termos, é a vida cristã, uma ação conjunta com Deus que pressupõe a fé.

A espiritualidade salesiana compõe-se de vários elementos: é um estilo de vida, trabalho, relações interpessoais; uma forma de vida comunitária; uma missão educativa pastoral na base de um património pedagógico; uma metologia formativa; um conjunto de valores e atitudes caraterísticos; uma peculair atenção à Igreja  e à sociedade através de setores específicos de compromisso; uma herança histórica de documentação e de escritos; uma linguagem caraterística; uma série típica de estruturas e de obras; um calendário de festas e de ocorrências próprias…

No quadro geral de referência da história da espiritualidade do século XIX,
explicitamos alguns elementos que nos parecem particularmente relevantes para descrever a experiência espiritual de Dom Bosco; são o seu ponto de partida, a sua raiz profunda, os seus instrumentos, o seu ponto de chegada.

1.1. Ponto de partida: a glória de Deus e a salvação das almas

A glória de Deus e a salvação das almas foram a paixão de Dom Bosco. Promover a glória de Deus e a salvação das almas equivale a conformar a própria vontade com a de Deus, que quer precisamente tanto a plena manifestação do bem que é Ele mesmo, ou seja, a sua glória, quanto a autêntica realização do bem do homem, que é a salvação da sua alma.

Num raro fragmento da sua “storia dell’anima”, Dom Bosco confessará (1854) o seu segredo acerca das finalidades da sua ação: «Quando me dediquei a esta parte do sagrado ministério entendi consagrar todas as minhas fadigas à maior glória de Deus e ao bem das almas, entendi empenhar-me em fazer bons cidadãos na terra, para que fossem depois um dia dignos habitantes do céu. Deus me ajude a poder continuar até ao último alento da minha vida. Assim seja». 

No mesmo texto, poucas linhas antes, tinha escrito:
«Ut filios Dei, qui erant dispersi, congregaret in unum. Joan. c. 11 v. 52. As palavras do santo Evangelho que nos dão a conhecer que o divino Salvador veio do céu à terra para congregar todos os filhos de Deus, dispersos pelas várias partes da terra, parecem-me poder aplicar-se literalmente à juventude dos nossos dias. Esta a porção mais delicada e mais preciosa da Sociedade humana, na qual se fundam as esperanças de um feliz futuro, não é por si mesma de índole perversa […] A dificuldade consiste em encontrar modo de os reunir, poder falar-lhes, moralizá-los. Esta foi a missão do Filho de Deus, isto somente a sua santa religião pode fazê-lo». 

Na base da opção de trabalhar no Oratório está a vontade salvífica de Deus, expressa na incarnação do Filho, enviado a reunir na unidade em torno de si os homens dispersos nos meandros do erro e pelos falsos caminhos da salvação. A Igreja é chamada a responder no tempo a tal divina missão de salvação. O Oratório insere-se, portanto, na economia da salvação; é uma resposta humana a uma vocação divina e não uma obra fundada na boa vontade de uma pessoa.

Em confirmação disto, lemos numa crónica de 16 de janeiro de 1861: «Instado a dar o seu parecer sobre o sistema da eficácia da graça, respondeu: estudei muito estas questões; mas o meu sistema é aquele que redunda na maior glória de Deus. Que me importa ter um sistema rigoroso e que depois leve uma alma para o inferno ou ter um sistema largo, contanto que leve almas para o Paraíso?» 

Análoga posição, em 16 de fevereiro de 1876, sobre o seu modo de proceder nas suas iniciativas: «Nós avançamos sempre pelo seguro; antes de empreendermos qualquer iniciativa, certificamo-nos de que é vontade de Deus que as coisas se façam. Começamos sempre as coisas com a certeza de que Deus as quer. Depois de ter esta certeza, avançamos. Poderão surgir mil dificuldades pelo caminho; não importa, esta é a vontade de Deus e nós enfrentamos com intrepidez qualquer dificuldade». 

Idênticas às finalidades do Oratório são as da «Obra dos Oratórios», quer dizer, da Sociedade Salesiana, do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, dos Salesianos Cooperadores, da Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora; todos são animados, motivados e movidos pelo mesmo escopo. Bastem poucas citações referentes aos Salesianos, entre as muitíssimas que poderiam aduzir-se.

Na introdução à primeira redação das Constituições, Dom Bosco afirmava que os primeiros colaboradores eclesiásticos se tinham associado com a «promessa de se ocupar apenas das coisas que o seu superior julgasse da maior glória de Deus e do bem da sua própria alma».  Repetia-se no capítulo seguinte sobre a finalidade da Sociedade: os Salesianos «esforçam-se por formar um só coração e uma só alma para amar e servir a Deus». 

Além disso, a 11 de junho de 1860, no pedido enviado ao Arcebispo de Turim para a aprovação das Constituições, lia-se: «nós, abaixo assinados, movidos unicamente pelo desejo de assegurar a nossa eterna salvação, unimo-nos a viver em comunidade a fim de mais facilmente podermos dedicar-nos às coisas que dizem respeito à glória de Deus e à salvação das almas».  Depois, a 12 de janeiro, escrevia ao card. Ferrieri que o objetivo da obra salesiana era sempre o mesmo: «Creio poder assegurar a V. Eminência que os Salesianos não têm outro fim senão trabalhar para a maior glória de Deus, para o bem da Igreja, difundir o Evangelho de Jesus Cristo entre os Índios Pampas e na Patagónia».  

De resto, Dom Bosco tinha já evidenciado a mesma finalidade da nascente Sociedade de S. Francisco de Sales, escrevendo, a 9 de junho de 1867, aos Salesianos na sua circular que precedeu de dois anos a aprovação da mesma Congregação: «Primeiro escopo da nossa Sociedade é a santificação dos seus membros […] Cada qual deve entrar na Sociedade guiado apenas pelo desejo de servir a Deus com maior perfeição, e de fazer bem a si mesmo, se quer fazer a si mesmo o verdadeiro bem é o bem espiritual e eterno». 

1.2. Raiz profunda: união com Deus 

O unum necessarium é a raiz profunda da sua vida interior, do seu diálogo com Deus, da sua operosidade de apóstolo. Não há dúvida que em Dom Bosco a santidade refulge nas suas obras, mas é certamente verdade que as obras são apenas uma expressão da sua fé. Não são as obras realizadas que fazem de Dom Bosco um santo, como recorda S. Paulo: «Ainda que eu fale as línguas dos homens… mas se não tiver caridade, de nada me serve» (1 Cor 13); mas é uma fé reavivada pela caridade operativa (cf. Gal 5,6b) que o faz santo: pelos frutos conhecereis as suas obras (cf. Mt 7,16.20).

À união com Deus, real e não só psicológica, são convidados todos os cristãos. União com Deus é viver a própria vida em Deus e na sua presença; é vida divina que está em nós por participação; é exercício da fé, esperança e caridade, em que às virtudes infusas se seguem necessariamente as virtudes morais, etc. Dom Bosco dá vigor evangélico à sua própria vida, faz da transmissão da fé em Deus a razão da sua própria vida, segundo a lógica das virtudes teologais: com uma fé que se torna sinal fascinante para os jovens, com uma esperança que se torna luminosa para eles, com uma caridade que se torna gesto de amor para com os últimos.

Dom Bosco foi sempre fiel à sua missão de caridade efetiva: ali onde um misticismo desencarnado se arriscaria a cortar os pontos de contacto com a realidade, a fé obrigou-o a permanecer na trincheira num ato de extrema fidelidade ao homem necessitado; ali onde podia surgir cansaço e resignação, sustentou-o a esperança; ali onde não parecia haver remédio, impeliu-o a agir a via indicada por Paulo: «Caritas Christi urget nos» (1 Cor 5,14). A caridade vivida por Dom Bosco não se detinha perante as dificuldades: «Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo» (1 Cor 9,22). Não havia que temer as derrotas no campo educativo, mas a inércia e o desleixo.

Viver a fé: significa abandonar-se com alegria confiadamente a Deus revelado em Jesus Cristo, de forma a ser capaz de viver todas as situações de modo salvífico: isto é, aceitar todas as circunstâncias da história de maneira a permitir que Deus nos manifeste a sua ação salvífica. Nenhuma situação corresponde de forma adequada à vontade de Deus, mas o homem pode viver cada situação de modo a cumprir sempre a vontade de Deus.
Viver a esperança: significa esperar Deus todos os dias para ser capaz de acolher o seu dom futuro; significa esperar Deus que vem todos os dias através de dons criados: cada dia tem o seu dom. Assim, em todas as situações, mesmo de falta: «nada poderá separar-nos do amor de Cristo» (Rom 8,39)

Viver a caridade: significa retribuir o presente espaço do amor de Deus. Para ser capazes de atitude oblativa, é necessário um exercício contínuo; requer-se um ambiente que seja estimulante: a missão salesiana é-o sem dúvida.

Tudo isto foi vivido por Dom Bosco em espírito de autêntica piedade. Ele não deixou formas de piedade, nem sequer uma sua devoção particular. A sua conceção é realista e prática. Só as orações do bom cristão, fáceis, simples, mas feitas com perseverança. Aquilo que Dom Bosco queria era que os salesianos consagrassem toda a sua vida à salvação das almas e santificassem o seu trabalho oferecendo-o a Deus; a oração devia intervir como elevação da alma a Deus, como petição e como alimento, noutras palavras, as “práticas de piedade” tinham uma espécie de função ascética. Os resultados deste exercício na vida de Dom Bosco estão perante os olhos de todos.

Ouçamos dois testemunhos. Eis o que um antigo aluno, de quarenta e cinco anos, militar e professor no exército, de Florença escreve a Dom Bosco em Turim:
«Meu querido Dom Bosco, parece ter razão em queixar-se de mim, é verdade, mas acredite mesmo que sempre o amei e amarei: em si encontro toda a consolação e admiro os seus feitos desde há muito; não falei nem permiti que alguém falasse mal de si; sempre o defendi. Vejo em si que dirigiria a minha alma em cada passo; fiquei confuso, estático, eletrizado nos seus raciocínios; foram fortes e sentidos: desconcertou-me e deixou-me deslumbrado ao ver que continua a amar-me sinceramente, sim, querido Dom Bosco. Creio na comunhão dos santos […]. Ninguém mais do que o senhor sabe e conhece o meu coração e poderá decidir. Por isso, termino, aconselhe-me, perdoe-me e recomende-me a Deus, a Maria  Santíssima… Envio-lhe um beijo do fundo do coração e faço profissão de fé que lhe quero bem…» 

O segundo testemunho é uma bem comovente página do santo Dom Orione aos seus clérigos em 1934, ano da canonização de Dom Bosco:
«Agora dir-vos-ei a razão, o motivo, a causa pela qual Dom Bosco se fez santo. Dom Bosco fez-se santo porque alimentou a sua vida de Deus, porque alimentou a nossa vida de Deus. Na sua escola aprendi que aquele santo não nos enchia a cabeça de parvoíces, ou de outra coisa, mas nos alimentava de Deus, e se alimentava a si mesmo de Deus, do espírito de Deus. Como a mãe se alimenta a si mesma para depois alimentar o seu próprio filho, assim Dom Bosco se alimentou a si mesmo de Deus, para nos alimentar de Deus também a nós. Por isso aqueles que conheceram o Santo, e que tiveram a enorme graça de crescer próximo dele, de escutar a sua palavra, de se abeirar dele, de viver de algum modo a vida do Santo, guardaram daquele contacto qualquer coisa que não é terreno, que não é humano; qualquer coisa que alimentava a sua vida de santo. E ele depois tudo retribuía ao céu, tudo retribuía a Deus, e de tudo tirava motivo para elevar as nossas almas para o céu, a fim de encaminhar os nossos passos para o céu».

Fiquem bem, com D. Bosco e M. Mazzarello!

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